De Kate Moss às clínicas de detox: os anos do "heroin chic"

Facto é que germinou toda uma pequena teia de relações públicas ligadas aos programas de detox das celebridades. Também a ansiedade, a depressão e outras questões do foro mental fazem parte deste pacote. O ex-futebolista Paul Gascoigne, as cantoras Amy Winehouse e Lilly Allen ou o banqueiro português António Horta-Osório juntam-se à A-List que passou pelas instalações do The Priory. Depois de Moss, Winehouse terá sido um dos exemplos mais gritantes de queda no abismo (desta vez sem retorno).
Antes da explosão das redes sociais, alguns pacientes realizavam conferências de imprensa para anunciar as suas recuperações. Outros lavravam artigos de jornal narrando os seus dias de internamento. No caso de Kate Moss, não era preciso dar-se ao trabalho: os jornais escreviam por si, como aconteceu quando deixou um lenço perto de uma vela e ativou três alarmes de incêndio, deixando a clínica-mãe em prevenção máxima. Roehampton, no sul de Londres, fora construída em 1811 como casa particular e convertida em hospital em 1872, sendo a mais antiga instituição psiquiátrica de Londres. Mas nos idos de 90 e primeira metade dos anos 2000, o entra e sai de celebridades dava ideia que não passava de um campo de férias para ricos, famosos e entediados.
Não é que Naomi Campbell fosse uma novata no assunto mas ainda em 97, depois do homicídio do designer e seu amigo Gianni Versace, a manequim britânica admitiu que passou a abusar de álcool e cocaína. Por essa altura, na passerelle, o arquivo guarda manequins com escaramuças várias, olhos negros, semblante pesado. Para a história passaria o desfile em Paris outono-inverno de Antonio Berardi, um ensaio sobre as implicações da violência, vitimização e auto-destruição, que provavelmente hoje obrigaria a muita contextualização. Estávamos no cair da década e, tal como Ícaro, a indústria haveria de pagar o seu preço por se aproximar demasiado do sol.
A tendência rebentou com a morte precoce de Davide Sorrenti, irmão de Mario. Em 1997, o fotógrafo de moda tinha apenas 20 anos quando sucumbiu a uma overdose. Para trás ficava o resultado do trabalho com a sua Leica, uma vasta crónica da boémia nova-iorquina e retratos de nomes promissores como a atriz Mila Jovovich, a manequim Jade Berreau, ou a sua namorada Jaime King, também ela refém da adição. Curiosamente, o termo que aqui nos traz foi vincado após o desaparecimento de Sorrenti. “Isto é heroína, isto não é é chique. Esta coisa do heroin chic tem que parar“, alertava Ingrid Sischy, editora da Interview Magazine de 1989 a 2008.
A mãe de Davide, Francesca Sorrenti, moveria uma campanha ativa contra o uso de drogas no meio, tentando limpar o apelido do filho, mas o peso no ambiente era indisfarçável. O circuito que nunca se livrou de má fama sujeitava-se ao teste de stress máximo quando o assunto era cumplicidade e desvalorização de dilemas omnipresentes: o peso, idade e outros traços de perfil dos manequins, os comportamentos de risco associados, o espectro do assédio, etc etc etc.
Nas páginas do The New York Times, a editora de moda Amy Spindler (1963-2024), que seguiu de perto aquela era, assinalava o óbito que deixava uma nódoa no mundo da Moda, recordando como as fotos dos 90 bebiam dos registos do fotojornalista Larry Clark nos anos 60 ou dos instantâneos da madrinha do undergound, Nan Golding, em 1970. Até o então presidente dos EUA, Bill Clinton, que já se manifestara sobre as fotos de adolescentes nas campanhas da Calvin Klein, interrompeu um pequeno-almoço para comentar a fatalidade. “Não é preciso glamourizar o vício para vender roupas,” observou Clinton. “A glorificação da heroína não é criativa, é destrutiva. Não é bonito; é feio. E não se trata de arte; trata-se de vida ou morte. E glorificar a morte não é bom para nenhuma sociedade.”, sentenciou, tal como é visível no documentário-biografia See Know Evil. Lançado em 2019, recorda o falecido fotógrafo.
Em 1999, o ritmo podia continuar acelerado mas a Vogue pregava o arranque de uma nova e urgente fase, liderada pela brasileira Gisele, que até 2006 se notabilizaria com as asas de anjo da Victoria’s Secret, um cortejo de perfeição física que voltou a mexer com o estereótipo vigente, incompatível com semblantes decadentes. Mais tarde, levantaria toda uma outra discussão.
Mais recentemente, contudo, o termo heroin chic voltava a ser alvo de menções. Ativa nos anos 2000, a manequim canadiana Erin Spanevello tinha apenas 21 anos quando morreu de overdose, em 2008. É comum observar a regra dos 20 anos quando se fala do retorno cíclico de tendências. Entre todos os possíveis throwbacks, entende-se que este é um dos mais alarmantes, já que envolve muito mais do que uma simples reciclagem de guarda-roupa, desfilado hoje por influencers que popularizam a estética Y2K, como as irmãs Hadid, Dua Lipa, Kaya Gerber ou Zendaya. Os alarmes voltaram a soar com a série Euphoria.

AFP/Getty Images
Gisele no desfile VS em 2001 © Getty Images
Em 2014, a manequim britânica Edie Campbell tornou-se o rosto da fragrância Black Opium, da Yves Saint Laurent (YSL) Beauté, uma campanha que chegou a ser investigada no Reino Unido pela Autoridade de Padrões de Publicidade após receber 11 queixas sobre a alegação de a publicidade dá uma imagem glamourosa das drogas, e a tendência das referências esbeltas mantinha-se para lá da viragem do milénio. De certa forma, a toada dos noventas nunca ter saído completamente de cena. Nos primeiros anos dos 2000, a diet culture continuou a fazer o seu caminho, programas como America Next Top Model ou The Biggest Loser tornaram populares o duelo contra a balança, e celebridades como Nicole Richie ou as gémeas Olsen reposicionaram os padrões de magreza e aspeto soturno. Bom, e trinta anos depois, quem diria que a corrida ao medicamento para emagrecer Ozempic dominaria as conversas de lifestyle.
Sobre manequins e magreza, a discussão é cíclica e nunca uma pasta totalmente arquivada. Recentemente, um dos gigantes da fast fashion teve que redimir-se por causa de uma campanha com modelos demasiado magras. Mas num mundo de smoothies verdes, tostas de abacate, sessões de yoga, estúdios de pilates e muito mindfullness, haverá realmente margem para reabilitar o pisar de risco de outros tempos? É provável que a discussão dure bem mais que um cigarro desmaiado na boca de Kate Moss.
observador